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sexta-feira, 24 de junho de 2016

Vocação

Por Gary North

"A ética protestante."Ouvimos esta frase o tempo todo. Geralmente, as pessoas falam da ética Protestante como alguma coisa que pertencia às gerações passadas do povo americano (ou inglês, ou holandês), mas que está morta hoje em dia. De fato, o único lugar em que isto parece florescer é o Japão, exceto pelo fato de que os japoneses não são protestantes. Mas, o que quer que isto seja, ou foi, a maioria das pessoas está convencida de que é algo do passado, uma característica de uma civilização Cristã que há muito se foi.

Temos que dizer, com toda honestidade, que todos os remanescentes da velha ética protestante estão batidos em nossos dias. O Humanismo fez progresso do período de 1860 até 1960, mas aí o capital roubado da cultura protestante começou a acabar. A cultura das drogas, a contra-cultura dos hippies, o colapso da performance das escolas públicas, a apatia dos trabalhadores e a crescente hostilidade entre gerações, tudo isto combinado abalou a fé das pessoas na cultura humanista e, ainda assim, eles não retornaram à fé de seus antepassados, o Cristianismo ortodoxo. A produtividade no trabalho caiu. É a menor da história americana e britânica. O que podemos fazer para reverter essas tendências?

A coisa óbvia a fazer é pregar um evangelho da redenção totalmente esférico: redenção pessoal, redenção econômica e redenção cultural. A lei de Deus se aplica a todas as esferas da vida. As bênçãos descritas em Deuteronômio 28:1-14 ainda estão disponíveis a uma sociedade que se arrepende. A ética do trabalho é um subproduto da fé cristã; onde a fé é restaurada, essa ética reaparecerá. O problema que enfrentamos hoje é este: mesmo aqueles que expressam sua fé em Jesus Cristo não têm entendimento algum a respeito de vocação. A vocação foi um componente básico do Protestantismo, e especialmente do Calvinismo, nos séculos XVI e XVII. As pessoas sabiam o que esta palavra significada. Hoje, não sabem mais.

Vocação: Geral e Especial

A Bíblia nos ensina que há uma vocação especial de Deus para o Seu povo. Ele os chama para fé em Jesus Cristo. Isto envolve abandonar o estilo de vida ímpio do passado. Deus chama os homens a um novo modo de vida. Ele os restaura à completa filiação ética (João 1:12). Esta é a doutrina da adoção. “Clame pelo nome do Senhor,” é uma frase bíblica familiar. Cristo disse “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia” (João 6:44). Deus chama Seu povo a fé em Cristo. Este chamado é, às vezes, conhecido como “vocação eficaz”, e é também conhecido como “vocação especial”. É um chamado para a salvação.

A vocação geral refere-se aos homens em geral. Cada homem é chamado a sujeitar a terra para a glória de Deus (Gênesis 1:28). Este é um chamado para trabalhar debaixo da soberania geral e providência de Deus. É a tarefa do homem de exercer domínio. Este chamado geral é a vocação do homem (“vocal”, ou “voz”). A vocação de um homem é o trabalho da sua vida, uma forma de serviço a Deus, quer ele reconheça que está sob Deus ou não.

A vocação geral assumiu grande importância durante a Reforma Protestante. Lutero e Calvino reforçavam que todo trabalho piedoso e honesto é aceitável a Deus, e que não deveria haver distinção alguma de natureza ética entre um ministro e um fazendeiro. Há distinções funcionais, é claro, motivo pelo qual a Bíblia estabelece certos requerimentos pessoais para os homens servirem como líderes da Igreja (1 Timóteo 3), mas não há distinções éticas. Nenhum homem é mais santo diante de Deus por causa do trabalho que tem.

Esta doutrina libertou os homens do opressão psicológica de sentir-se inferior por causa de seu trabalho. Se qualquer trabalho de um homem é aceitável a Deus, então é vantajoso pagar um homem para trabalhar o melhor que ele puder. Deus honra competência e a concede mais ainda para aqueles que se humilham diante dele e que tentam melhorar seu desempenho. Um bom encanador ganha mais respeito por causa seu trabalho do que um pregador preguiçoso. A questão aqui refere-se à diligência, não ao tipo de trabalho realizado.

Esta é claramente uma doutrina libertadora. Ela conclama a todos os homens que trabalhem duro e honestamente. Ela ensina aos homens que, não importa o que eles fazem para ganhar a vida, vale a pena fazê-lo bem. Isto, por sua vez, aumenta a produção econômica, pois os homens se esforçam para trabalhar de forma mais inteligente e com menos desperdício. Eles se esforçam para dar bom testemunho de si mesmos diante de Deus, e ao fazerem-no, dão bom testemunho de si diante dos homens. Isto significa mais riqueza para todos os membros do mercado, pois todos são beneficiários de um trabalho eficiente - todos, exceto aqueles que são ineficientes, preguiçosos ou incompetentes, que enfrentam uma maior concorrência do que antes. Esses merecem o que recebem.

A vocação geral é universal. Todos os homens serão responsabilizados por seu trabalho, e eles serão recompensados no céu, ou amaldiçoados no inferno, em termos de suas vocações gerais (Lucas 12: 47-48; l Coríntios 3). Este tipo de obrigação moral de trabalhar duro e honestamente pressiona os homens a melhorarem seu desempenho. É uma forma de auto-governo, e a sociedade não tem de impor sanções diretas sobre os homens a fim de colher os frutos do auto-governo. A conversão generalizada dos homens a uma forma de Cristianismo que prega o carácter vinculativo da vocação geral vai produzir um aumento da riqueza per capita na sociedade. As pessoas se esforçarão mais, e trabalharão de maneira mais inteligente.

Qual Vocação?

Tenho sido economicamente bem sucedido até agora na minha vida. Por causa da meu sucesso público e visível, muitas vezes alguns homens me perguntam, especialmente os mais jovens, quais são as regras do sucesso financeiro na vida. Os Cristãos que me perguntam isto, às vezes me perguntam também o que eu acho que eles deveriam fazer para ganhar a vida.

Eu tenho uma resposta pronta para isto. Relaciona-se com a doutrina bíblica da vocação. Não é uma resposta complicada, e a maioria dos Cristãos vêem a verdade neste meu conselho. O que me surpreende, entretanto, é que eles nunca ouviram nada parecido antes. Nenhum pastor os aconselhou. Nenhum pai sentou-se com eles para lhes falar sobre estas regras básicas para a ocupação de um Cristão. Aqui estão elas:

1) Avalie suas capacitades de forma precisa
2) Qual o trabalho mais importante que você pode fazer?
3) Qual o trabalho mais importante que você pode fazer no qual poucos podem substituí-lo?

Um homem que tem ainda que uma vaga ideia das respostas a essas três perguntas tem um bom palpite sobre o que deve fazer de sua vida. Não é fácil conduzir este questionário, mas é vital. Deus requer que cada homem o faça.

Capacidades: Quanto mais você tem, mais difícil é a decisão. O homem com capacidades limitadas, exceto para uma única habilidade, tem mais facilidade em tomar esta decisão. Ele sabe o que deve fazer. Mas alguém que tem múltiplos talentos - e isto inclui a maioria dos homens – terá uma dura avaliação a fazer. "Que tipo de trabalho mais me apetece? Quais são os que eu faço melhor? Quais são aqueles que eu estaria disposto a fazer para o resto da minha vida? Quais que são aqueles que eu não aguentaria fazer por muito tempo? Quais habilidades que eu deveria procurar melhorar, caso me seja dada a oportunidade?"

Você deve ser rigorosamente honesto aqui. Você provavelmente deve consultar outras pessoas: professores, pais, pastor, empregador, e até mesmo um serviço de teste vocacional, se necessário. Você deve enfrentar a si mesmo. Você também deve enfrentar avaliações de você partindo de outras pessoas. Você estará servindo em um mercado, afinal. Acostume-se com a idéia de ter que levar a sério opiniões de outras pessoas a respeito de seus talentos.

Importância do trabalho: Se um homem pode fazer bem diversas coisas, então ele terá que lidar com o problema de achar uma ocupação adequada às suas habilidades. Se ele consegue falar cinco línguas estrangeiras fluentemente, o que ele deveria fazer com seu talento? Ensinar na escola? Em que nível? Traduzir para uma corporação multinacional? Traduzir para uma agência federal? Traduzir livros para uma editora? Juntar-se a um time Wycliffe de tradução da Bíblia? Há diversas possibilidades. Níveis salariais são apenas um meio de tomar esta decisão. Existem outros.

Eu digo às pessoas para usarem esta regra de ouro em sua tomada de decisão. Tente olhar para frente 40 anos, ou para quando você achar-se velho demais para este trabalho. Quando você olhar para trás em sua vida, o que você vai pensar de seu trabalho? Ele honrou a Deus? Você deixou uma grande herança para trás para os seus filhos? Será que seus filhos cresceram com a formação moral para lidar com a sua herança de uma maneira piedosa? Você deu um monte de dinheiro para a caridade? Você dedicou sua vida inteira em serviço, em vez de gastá-la por puro dinheiro? Foi uma boa decisão você aceitar esse chamado como o trabalho da sua vida? Se você mesmo tentar responder a essas perguntas com antecedência, é bem mais mais provável que você não irá se decepcionar quando se perguntar de novo em 40 anos.

Capacidade de ser substituído: Isto é algo que poucos homens consideraram antecipadamente. Eles nunca deveriam deixar de fazê-lo. Não é suficiente selecionar o trabalho mais importante que você pode fazer. Você tem que perguntar a si mesmo: "Se eu fosse sair, ou morrer, este trabalho seria rapidamente preenchido por alguém tão eficaz como eu, e pelo mesmo salário?"Se a vaga é fácil de ser preenchida rapidamente e pelo mesmo salário, então a pessoa que a detém agora não distinguiu-se pelo nível de seu desempenho. Se um humanista pode fazer o trabalho de um Cristão tão bem, então há algo de errado com o trabalho do Cristão. Se seu trabalho é bom, então provavelmente há algum outro trabalho que ele poderia fazer que Deus quer preenchido por um Cristão.

Hoje, poucos Cristãos operam em termos da doutrina da vocação. Eles não pensam sobre como eles são importantes, como Cristãos, em sua vocação. Eles não entendem como devem fornecer únicos e exclusivos serviços Cristãos para seus empregadores. Em suma, eles não pensam como Cristãos.

O trabalho que um homem faz pode ser importante aos seus próprios olhos, ou aos olhos de outros, mas, permanecer no que parece ser o trabalho mais importante quando Deus poderia usar as mesmas habilidades para algo muito mais vantajoso em outro trabalho, então tal homem está desperdiçando seu talento. Qualquer homem que não puder dizer que ele, como um trabalhador Cristão, é insubstituível em seu trabalho, deve considerar procurar por um novo emprego. Se ele é facilmente substituível, então é melhor olhar em volta e ver se há algum outro trabalho importante a sua disposição no qual ele seria mais difícil de substituir.

Em suma, vá onde não há muita concorrência. Vá para onde a sua presença naquele lugar irá elevar o próprio lugar. Vá onde você, como Cristão, irá gerar imitadores, mesmo entre os não-crentes. Vá onde você terá a oportunidade de treinar outras pessoas em suas vocações. Se você não está agora em tal posição, mas poderia estar, então você não está exercendo sua vocação de maneira adequada. A capacidade de ser substituído é uma maneira de testar o seu lugar na vida. Você não iria querer ser apenas mais uma engrenagem de uma máquina econômica vasta e impessoal.

A Semana de Trabalho de 40 Horas

Nenhum Cristão deve trabalhar apenas 40 horas por semana, a menos que seja deficiente fisicamente de alguma forma. Poucos homens ficam ricos ou famosos trabalhando apenas 40 horas por semana. Poucas pessoas se destacam em suas profissões trabalhando apenas 40 horas por semana. Seis dias trabalharás – e certamente não apenas 7 horas por dia. Trabalhe 9 ou 10.

Agora, veja bem, eu acho que, em circunstâncias normais, pessoas assalariadas devem trabalhar não mais de 40 horas para um empregador. Uma vez que tão poucos homens trabalharão 60 horas por semana, você estrará jogando seu tempo fora (vendendo-o muito barato) se trabalhar por de forma assalariada mais de 40 horas por semana. Esse extra de 10 ou 20 horas deve ser investido servindo à igreja, ou estabelecendo um negócio familiar, ou na obtenção de uma educação melhor, ou em serviços comunitários. Não estou falando de homens que trabalham por comissão, ou os trainees em um estabelecimento profissional que podem tornar-se parceiros do negócio se eles trabalharem duro o suficiente. Mas um homem que está disposto a trabalhar 60 horas por semana deve trabalhar pelo menos 20 para si mesmo. Use o salário para alimentar a família; trabalhe as 20 horas adicionais para acumular capital, seja para sua aposentadoria, ou para o lançamento de um negócio familiar. Eu me tornei financeiramente independente fazendo apenas isso. E recomendo fortemente.

Um trabalho assalariado raramente é uma vocação integral. Pode ser um meio para uma vocação. Um homem pode ser hábil em um campo que não paga bem o suficiente para sustentá-lo em tempo integral. Ele usa suas 40 horas de trabalho por semana para se sustentar em sua vocação. Isso é o que eu faço com o meu boletim econômico, Remnant Review. A renda deste empreendimento permite-me doar a maior parte de meu tempo e energia para o Institute for Christian Economics, do qual eu não recebo salário ou outra compensação (exceto psicológica). Minha vocação é o meu trabalho em economia Cristã. Minha fonte de renda é o meu boletim econômico. Eu faço distinção entre os dois trabalhos.

Somente naqueles trabalhos raros, como por exemplo o pastorado, onde um homem é assalariado e, apesar disso, precisa dar mais de 40 horas por semana, deveria tal vocação ser considerada. Mesmo neste caso, este homem está dando estas 20 horas extras para Deus. Ele não está dando-as para algum empregador que as converterá em lucros para si mesmo e sua corporação. Ninguém em perfeito juizo trabalha 60 horas por semana para outra pessoa, apenas pelo dinheiro. Há maneiras melhores para fazer um dinheirinho: mais produtivas, mais gratificantes e mais rentáveis. Além disso, mais agradáveis a Deus. Nunca dê de bandeja a um empregador o que você deveria estar dando a Deus, especialmente seu tempo.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Governos Legítimos



Por Gary North [1]

“Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal. Portanto é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo, mas também pela consciência. Por esta razão também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo.
Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra.” (Rm 13.1-7, ACF)

O princípio teocêntrico que sustenta esses preceitos é Deus como a suprema autoridade: hierarquia.[2] No topo da pirâmide do poder institucional está Deus, que delega autoridade aos homens.

A. Autoridades Plurais

Paulo fala de poderes superiores. A Concordância Strong definiu a palavra grega exousia como segue: “(no sentido de habilidade); privilégio, i.e. (subj.) força, capacidade, competência, liberdade, ou (obj.) maestria (concr. magistrado, super-humano, potentado, símbolo de controle), influência delegada: autoridade, jurisdição, liberdade, poder, direito, força.”[3] Isto significa, basicamente, autoridades legítimas. Existem mais do que uma. Não há hierarquia única nesta vida. Deus criou jurisdições competitivas com o fim de eliminar a possibilidade de uma tirania centralizada absoluta. “E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro. Assim o Senhor os espalhou dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a cidade.” (Gn 11.6-8, ACF).[4] Um governo civil nacional ou império nacional sempre tem encontrado competição: de governos civis estrangeiros, governos civis locais, famílias, grupos dinásticos, igrejas, associações voluntárias, e negócios.[5]
Paulo diz aqui que autoridades legítimas merecem obediência. Ele não diz ou implica que existe somente uma autoridade institucional legítima que deve ser obedecida. Em sua confrontação com o sumo sacerdote, ele deixou esse ponto claro. Mesmo sendo ele um apóstolo e estando em posse de autoridade legítima, ele não desafiou deliberadamente o sumo sacerdote. “Mas o sumo sacerdote, Ananias, mandou aos que estavam junto dele que o ferissem na boca. Então Paulo lhe disse: Deus te ferirá, parede branqueada; tu estás aqui assentado para julgar-me conforme a lei, e contra a lei me mandas ferir? E os que ali estavam disseram: Injurias o sumo sacerdote de Deus? E Paulo disse: Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote; porque está escrito: Não dirás mal do príncipe do teu povo.” (At 23.2-5). Paulo honrou legítimas autoridades. Mas quando uma autoridade pudesse ser usada para contrabalançar outra, Paulo as colocava em competição para ganhar sua liberdade. “E Paulo, sabendo que uma parte era de saduceus e outra de fariseus, clamou no conselho: homens irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseu; no tocante à esperança e ressurreição dos mortos sou julgado. E, havendo dito isto, houve dissensão entre os fariseus e saduceus; e a multidão se dividiu.” (At 23.6-7). O partido dos Saduceus, que negava a ressurreição corporal, estava associado ao sacerdócio do templo. As palavras de Paulo aos Fariseus imediatamente minaram o poder de Ananias para processar Paulo legalmente usando-se da autoridade do sacerdócio.
Nenhum poder é estabelecido na terra que não seja estabelecido por Deus. Neste ponto, Paulo é claro. “Porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus” (v. 1). Esta frase inglês[6] - “as potestades que há” - vem ao longo dos séculos sendo usada para descrever as supremas autoridades numa sociedade. Por consequência, obediência a elas é biblicamente obrigatório. “Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação” (v. 2). Porque Deus estabeleceu autoridades para governar sobre os homens, desses é requerido, por Deus, que lhas obedeçam.
Paulo viveu sob o governo de Nero, um tirano sob todos os aspectos. Mesmo assim, ele escreve: “Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem” (v. 4). Cristãos devem fazer boas obras, recebendo louvor dos seus governantes. Deus tem estabelecido governantes em posições de autoridade para serem um terror aos malfeitores. Deixe que esses governantes devotem seus esforços para derrotar seus inimigos, não que procurem cristãos rebeldes para perseguir legalmente.
Existem governantes que são eles mesmos maus e aliados com homens perversos. Não obstante, Paulo diz para obedecê-los. O objetivo dos governantes é defender a ordem social. Todo governo tem regras. Ele impõe padrões com suas sanções.[7] Muitos governantes civis querem mais autoridade para si mesmos. Eles querem que as coisas andem devagar. Deus colocou na natureza humana o desejo de viver num mundo previsível. Quanto mais próximas da retidão as leis civis forem, maior a cooperação voluntária que os governantes vão ganhar dos seus subordinados. Governantes não podem mandar sem que aqueles que se subordinam cooperem voluntariamente. Se todos se recusarem a obedecer a lei, não haverá polícia suficiente para fazê-la valer. Esse é o motivo pelo qual governantes punem uma figura representativa. Isso manda uma mensagem ao público: “Se você não obedecer, e todos os demais obedecerem, nós pegaremos você.” Mas então vem o dia em que muitas pessoas têm uma chance e deliberadamente desobedecem a lei. Elas se recusam a cooperar com o governo civil. Neste dia, a ilusão do estado onipotente termina.
A igreja primitiva viveu debaixo de uma tirania civil pagã. Roma ordenava a idolatria como um meio de estender o poder do império. Seu sistema politeísta de governo civil buscou unidade intercultural pela divinização do imperador. Mas os cristãos se recusavam a oferecer sacrifícios públicos para “o gênio do imperador”, porque entendiam a teologia dos impérios antigos: a divinização do homem e do estado. Por esta rebelião, eles foram intermitentemente perseguidos por cerca de três séculos. Eles não se rebelaram pegando em armas. Eles meramente se recusavam a participar numa falsa adoração. Ao longo do tempo, eles ganharam reputação por serem bons cidadãos e subordinados confiáveis. No século quatro, eles herdaram o império Romano. Eles serviram sob tirania, e se tornaram governantes quando essa tirania colapsou no caos da guerra civil e da bancarrota. Desobediência não-violenta à autoridade civil neste único ponto eventualmente deu aos cristãos a autoridade civil. À parte isto, eles eram obedientes. Este é um princípio bíblico de autoridade, que aquele que quer governar deve primeiro servir. Jesus disse a seus discípulos, “Os reis dos gentios dominam sobre eles, e os que têm autoridade sobre eles são chamados benfeitores. Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve.” (Lc 22.25-26).[8] Mas há outro princípio de autoridade bíblica. “Porém, respondendo Pedro e os apóstolos, disseram: Mais importa obedecer a Deus do que aos homens.” (At 5.29). Ambos os princípios devem ser honrados. Ambos os princípios devem ser intelectualmente defendidos pelos guardadores do pacto. Ambos devem ser honrados pelo rebanho.

B. A Legitimidade dos Governos

A discussão de Paulo sobre autoridades institucionais segue-se após uma passagem que desafia a vingança pessoal. “Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor” (Rm 12.19). Se a vingança pessoal é errada, então como Deus traz vingança na história? Através do governo civil. O texto não diz que vingança é errado. Diz que Deus possui autoridade final para impor vingança. Ele delegou a autoridade de impor vingança física a dois governos: civil e familiar. Pedro concordou com Paulo neste ponto: “Sujeitai-vos, pois, a toda a ordenação humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior, quer aos governadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores, e para louvor dos que fazem o bem. Porque assim é a vontade de Deus, que, fazendo bem, tapeis a boca à ignorância dos homens insensatos; Como livres, e não tendo a liberdade por cobertura da malícia, mas como servos de Deus. Honrai a todos. Amai a fraternidade. Temei a Deus. Honrai ao rei. Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos senhores, não somente aos bons e humanos, mas também aos maus. Porque é coisa agradável, que alguém, por causa da consciência para com Deus, sofra agravos, padecendo injustamente” (1Pe 2.13-19).
Nem Pedro nem Paulo demandam obediência ao governo civil ao custo da obediência a outros governos legítimos. De novo, Pedro explicitamente disse aos líderes judeus, “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5.29b). Ainda que tivessem autoridade para castigá-lo, o que fizeram (At 5.40). Ele se submeteu ao castigo, mas não à sua ordem de parar de pregar o evangelho. Ele desobedeceu, mas ele se submeteu às sanções por causa da sua desobediência. Assim também fez Paulo.
A questão é: Pedro e Paulo conscientemente agiram dentro do sistema legal romano existente. Paulo entendia a lei romana, e como um cidadão romano, a invocou. “Todavia Festo, querendo comprazer aos judeus, respondendo a Paulo, disse: Queres tu subir a Jerusalém, e ser lá perante mim julgado acerca destas coisas? Mas Paulo disse: Estou perante o tribunal de César, onde convém que seja julgado; não fiz agravo algum aos judeus, como tu muito bem sabes. Se fiz algum agravo, ou cometi alguma coisa digna de morte, não recuso morrer; mas, se nada há das coisas de que estes me acusam, ninguém me pode entregar a eles; apelo para César” (At 25.9-11). Suas palavras, “não recuso morrer”, afirmaram a legitimidade do governo civil, incluindo a pena capital. Mas, ao mesmo tempo, ele apelou para César para escapar da jurisdição de Festo, que Paulo acreditou que estava agindo a favor dos judeus. Isso foi consistente com sua afirmação da função ministerial dos magistrados civis.
O anarco-capitalista rejeita todas as formas de governo civil. Ele pode apontar para todo tipo de taxa como uma distorção do livre mercado.[9] Ele vê o mercado como legitimamente autônomo. Mas então vêm os problemas da violência e do pecado. Como estes podem ser previsivelmente contidos? A resposta bíblica é governo, incluindo governo civil. Num mundo anarco-capitalista de exércitos privados visando o lucro, o resultado é a sociedade de senhores da guerra. Exércitos privados militarmente bem-sucedidos vão sempre procurar por estabelecer seu mandato monopolista matando a competição, literalmente. Governos civis sempre reaparecem. Eles são um dos quatro sistemas de governo ordenados por Deus: governo próprio, governo eclesiástico, governo familiar e governo civil. Todos os quatro estão selados por um juramento. Todos os quatro envolvem sanções.
Cristãos não podem legitimamente adotar o programa libertário de um mundo sem governo civil. O pecado demanda governo civil e sanções civis. O direito de governantes civis de impor punições físicas é claramente afirmado por Paulo em Atos 25. Ele afirma em Romanos 13 a legitimidade do governo civil entre outros governos legítimos. Ele diz que os governantes são ordenados por Deus como seus ministros. Esta é uma linguagem forte. Ela invoca autoridade de Deus ao lado do estado. Se Paulo está correto, então anarco-capitalismo está errado. Não há saída para isso.

C. Crime versus a Divisão do Trabalho

A ameaça de crime força os homens a alocar recursos econômicos escassos para a defesa contra criminosos. O estado é a instituição primária de prevenção ao crime. O estado impõe sanções negativas em criminosos convictos. O objetivo é encorajar a justiça por meio do medo. “E os juízes inquirirão bem; e eis que, sendo a testemunha falsa, que testificou falsamente contra seu irmão, Far-lhe-eis como cuidou fazer a seu irmão; e assim tirarás o mal do meio de ti. Para que os que ficarem o ouçam e temam, e nunca mais tornem a fazer tal mal no meio de ti. O teu olho não perdoará; vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (Dt 19.18-21).[10] O medo aumenta o custo do comportamento criminoso. Como o economista diz, quando o custo de algo aumenta, tudo mais permanecendo igual, a demanda diminui.[11] Este é o objetivo de sanções civis negativas: menos crime.
O gasto com prevenção ao crime reduz a riqueza dos homens. Eles acreditam que este gasto previne uma redução ainda maior de sua riqueza por culpa de criminosos. O custo da cooperação é mais custoso para os homens quando o crime aumenta. Suas vidas e propriedade são menos seguras. Isto faz com que maiores precauções sejam tomadas sobre a entrada em empreendimentos cooperativos com pessoas que eles não conhecem bem. Os custos de informação de lidar com estranhos é alto, e algumas pessoas escolhem não assumir esses riscos extras. Por causa do pecado, a divisão do trabalho é reduzida. Atividades de prevenção ao crime são meios de remover risco e aumentar o nível de cooperação. Autoridades institucionais procuram reduzir o crime pela imposição de sanções negativas aos transgressores da lei.
Para maximizar a divisão do trabalho num mundo de pecado, o estado deve impor sanções negativas somente àqueles que quebram a lei, biblicamente definida. Pela adição de leis que vão além da Bíblia, ou mesmo contra ela, governantes civis diminuem a divisão do trabalho. Legisladores e burocratas que vão além da Bíblia na busca de acabar com atividades ilegais tornam mais cara para as pessoas a cooperação voluntária para estas alcançarem seus fins. Isto reduz a divisão do trabalho. Isto por consequência reduz a riqueza das pessoas. O estado, assim, produz a mesma condição que os criminosos produzem. A diferença é, bons homens sentem-se justificados em defender a si mesmos contra criminosos. Eles sentem-se muito menos justificados em defender a si mesmos contra o estado. O estado predador pode se tornar tão grande ameaça à cooperação social e econômica quanto a classe criminosa predadora. Em alguns casos, o próprio estado alia-se à classe criminosa.[12]

Conclusão

Paulo fala da ilegitimidade da vingança pessoal. Ele não nega a legitimidade da vingança em si. Ele diz que Deus restringiu a vingança aos governos civis legítimos. O poder civil é encarregado de conter violência pessoal imprevisível, contendas familiaresδ, e guerras de gangues.
O livre mercado não é autônomo. É uma extensão do indivíduo ou da família, ambos os quais operam debaixo da lei civil. O livre mercado está debaixo da lei civil. Lei civil é pactualmente superior ao livre mercado. O pacto civil estabelece as condições para o livre mercado modelando o comportamento e atitudes públicos. Lei civil é aplicada por governantes que são ministros de Deus. Taxação em si não é roubo, contrariamente a alguns teóricos libertários. Muitas formas de taxação são roubo, e todos os níveis acima do décimo  com certeza são (1Sm 8.15, 17), mas não todas. Autoridades legítimas têm direito ao suporte econômico. Taxação suporta o estado.
Paulo conclama os cristãos a obedecerem autoridades legítimas. Isso pode significar desafiar uma autoridade em nome de outra. Autoridades estão em alguma extensão em competição uma com a outra. Não é ilegal colocar uma contra a outra, como a tática de Paulo em Atos indica. Liberdade é, às vezes, adquirida pelo uso de uma autoridade para reduzir o poder de outra. Paulo usou a lei romana para minar o desejo de Festo de agradar os judeus. Ele legalmente removeu a si mesmo da jurisdição de Festo. Um sistema legal não deve ser permissão para se tornar monolítico.





[1]     NORTH, Gary. Cooperation and Dominion: An Economic Commentary on Romans, chapter 11 (“Cooperação e Domínio: Um Comentário Econômico em Romanos, capítulo 11”). Dallas: Point Five Press, 2012. Páginas 119 a 126. Disponível em: < http://bit.ly/ZW0TNR >. (Traduzido por Willian A. S. Souza: willianalexss@hotmail.com; e revisado por: Matheus Henrique Klem Galvez. Concluída em 24 de Dezembro de 2014.)
[2]     Ray R. Sutton, That You May Prosper: Dominion By Covenant (“Para Vocês Prosperarem: Domínio pelo Pacto”), 2ª ed. (Tyler, Texas: Institute for Christian Economics, [1987] 1992), cp. 2. (http://bit.ly/rstymp) Gary North, Unconditional Surrender: God’s Program for Victory (“Rendição Incondicional: O Programa de Deus para Vitória”), 5ª ed. (Powder Springs, Georgia: American Vision, [1980] 2010), cp. 2.
[4]     Gary North, Sovereignty and Dominion: An Economic Commentary on Genesis (“Soberania e Domínio: Um Comentário Econômico em Gênesis”) (Dallas, Georgia: Point Five Press, [1982] 2012), cp. 19.
[5]     Defensores do estado moderno às vezes clamam jurisdição terrena final por isto: o divino direito do governo civil – não apelam terrenamente a nada maior. Esse tipo de clamor foi levado muito mais a serio em 1940 que no final do século XX. O maior nível alcançado da fé Ocidental nos governos civis está agora atrás de nós. A inevitável bancarrota dos programas de previdência compulsória de todos os governos Ocidentais do tipo progressivo e sustentado por impostos vai eliminar muitos dos traços que restam dessa fé antes de meados do século XXI. Sobre esses programas estatisticamente arruinados, ver Peter G. Peterson, Gray Dawn: How the Coming Age Wave Will Transform America— and the World (“Amanhecer Cinzento: Como a Onda da Próxima Era Vai Transformar a América – e o Mundo”) (Times Books, 1999).
[6]     N.T.: O texto é em inglês, portanto North cita a frase em inglês. Ele discorre sobre a interpretação comum que se faz dela em sua língua. O original é: “This English phrase—“the powers that be”—has come down through the centuries to describe the supreme rulers in a society.”
[7]     North, Sovereignty and Dominion. (“Soberania e Domínio”), cps. 3, 4.
[8]     Gary North, Treasure and Dominion: An Economic Commentary on Luke (“Tesouro e Domínio: Um Comentário Econômico em Lucas”), 2a ed. (Dallas, Georgia: Point Five Press, [2000] 2012), cp. 51.
[9]     Murray N. Rothbard, Power and Market (“Poder e Mercado”) (Auburn, Alabama: Mises Institute, [1970] 2006). (http://bit.ly/RothbardPAM)
[10]   Gary North, Inheritance and Dominion: An Economic Commentary on Deuteronomy (“Herança e Domínio: Um Comentário Econômico em Deuteronômio”), 2ª ed. (Dallas, Georgia: Point Five Press, [1999] 2012), ch. 45.
[11]   N.T.: Caso não tenha ficado claro, vamos usar outras palavras: Imagine que você compre bananas e maçãs regularmente. Se o preço da banana aumentar, e o preço da maçã permanecer o mesmo, é normal que você compre mais maçãs e menos bananas, assumindo que não haja possibilidade de substituição entre bananas e maçãs. O custo da banana ficou alto frente ao custo da maçã. O mesmo vale se substituirmos a banana por “comportamento criminoso” e a maçã por “comportamento normal”. Havendo punições, o custo de ser um criminoso é muito alto, então as pessoas acabam por evitar esse tipo de comportamento: menos crime.
[12]   No início dos anos 70, Alexander Solzhenitsyn, na sua história em vários volumes, The Gulag Archipelado (“O Arquipélago Gulag”), disse que esse foi o caso por longo tempo na União Soviética.
[13]   N.T.: O sentido aqui é contenda familiar / disputa familiar / briga familiar no sentido de um prolongado estado de hostilidade mútua, tipicamente entre famílias e comunidades, caracterizada por ataques violentos em resposta a injúrias anteriores.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Política Segundo a Bíblia

Introdução
               Política é um tema sempre recorrente em nossas discussões. É um tema sobre o qual virtualmente todos nós temos alguma opinião, algumas embasadas, outras meramente especulativas.
               Há um pensamento dentro do Cristianismo que defende uma separação entre assuntos espirituais e terrenos. Segundo esse pensamento, conhecido de forma genérica como pietismo, a Bíblia descreve e regula o funcionamento do reino espiritual e da igreja institucional. O crente não pertenceria a este mundo e, portanto, nada tem a ver com os assuntos seculares, que significa que não devemos ter esperança alguma em influenciar esses meios.
               Outra corrente, entretanto, defende que, como Cristãos, podemos e devemos influenciar os assuntos seculares, mas não devemos ter esperança de sucesso. Apesar disso, dizem, deveríamos influenciar baseando-se numa lei natural comum. A lei civil de Israel, por exemplo, serviria, no máximo, como um guia para o funcionamento do estado.
               Uma terceira posição, conhecida como teonomia, prega que não existe neutralidade em nenhuma área do conhecimento e da existência do homem. A Lei de Deus é o padrão moral imutável e eterno para governar os assuntos terrenos. Assumir que o reino secular está fora de nosso alcance ou que devemos influenciá-lo baseado no senso e justiça comuns seria negar o governo ético da Lei de Deus sobre tudo e sobre todos. Seria dizer que política é imoral ou amoral. Nenhum dos dois pensamentos estão de acordo com a palavra de Deus.
               Sobre o pietismo, R. C. Sproul Jr. comentou: “Pietismo é uma visão que olha para o mundo mais amplo como uma questão de extrema insignificância, pois se foca exclusivamente em tornar a alma individual melhor. Radicalmente individualista e profundamente gnóstico, o movimento evita o envolvimento político, denigre o exercício do domínio e algumas vezes faz adições à lei de Deus. Isso, sem dúvida, nunca deveria ser confundido com piedade, que é algo bom. Piedade é santidade no caráter, um zelo de crescer em graça e sabedoria, dar muito fruto do Espírito. Porque essas duas coisas são frequentemente confundidas, não é incomum aqueles mais relaxados na busca da santidade acusar os mais zelosos de pietismo. De forma semelhante, não é incomum alguns que são apaixonados em reafirmar os direitos régios do Rei Jesus, que anseiam em ver o Seu reino reconhecido, desdenhem a busca da piedade pessoal como uma distração.”[1]
               João Calvino, reformador francês, afirmou sobre o Cristão ocupar lugares na política: “Onde quer que os profetas falam do Reino de Cristo, é dito que os reis viriam adorá-lo e homenageá-lo (Is. 49). Não é dito que eles abandonariam o ofício para se tornarem cristãos, mas, em vez disso, que na dignidade real, se sujeitariam à Jesus Cristo como o Soberano Senhor. Davi disse o mesmo e exortou que eles cumprissem suas funções. Não disse para lançarem fora seus diademas ou cetros, mas somente para beijar o Filho (Sl 2), isto é, para homenageá-Lo e serem sujeitos à Ele no governo. Ele fala do Reino de Nosso Salvador Jesus Cristo e ele manda que todos os reis e superiores sejam sábios. O que é essa sabedoria? Que lição ele dá? De abrir mão de tudo? Não, mas de temer a Deus e honrar Seu Filho. Além disso, Isaías profetizou que os reis seriam como aios e que as rainhas seriam como as suas amas (Is. 49). Eu pergunto, como é possível dizer que os reis são protetores da Igreja Cristã e, ao mesmo tempo, dizer que a posição que eles ocupam não condiz com o Cristianismo? Se o Senhor lhes coloca nessa posição, conforme dizem os profetas, então já provamos nossa posição. Considerando que Ele deu à eles um lugar tão honroso da comunhão de Seu povo, de ordenar que sejam protetores de Sua Igreja, que imprudência é essa de excluí-los?”[2]
               O verdadeiro Cristianismo oriundo da Reforma Protestante defende a soberania de Cristo sobre o homem todo. As instituições humanas são meramente a ação do homem posta em prática e, como tais, também estão sujeitas ao governo e ao sonhorio de Jesus Cristo. O Cristão deve, por causa do Pacto de Domínio (e da Grande Comissão, onde ele foi reafirmado) lutar por ver o senhorio de Cristo reconhecido em todas a áreas da vida e das relações sociais humanas. Baseando-se nisso é que desenvolveremos alguns ensinos bíblicos sobre a política.
              
Estado
               O estado é, segundo o dicionário Houaiss, o “conjunto das instituições (governo, forças armadas, funcionalismo público etc.) que controlam e administram uma nação.” O estado é, em outras palavras, a instituição social que detém o monopólio da coerção.
               Deter o monopólio da coeração significa ter a autoridade moral de iniciar o uso de violência para forçar um indivíduo a agir contra sua vontade. Sendo esta a prática essencial do estado, é extremamente necessário estudarmos o que diz a Bíblia sobre ele. O estado deveria existir? Se sim, quais os limites de sua atuação? Ele deve proibir o quê? Se não, quem cuidará de manter a ordem social? Seria mesmo necessário ter alguém cuidando da ordem social?
               Para que possamos responder a essas perguntas, precisaremos do auxílio do nosso texto bíblico principal para esta presente lição: Romanos 13:1-6.

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação.Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo, também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço.

Existem diversos textos na Bíblia tratando sobre política. Creio que este texto paulino é o mais enfático em seu ensino. Vamos sintetizá-lo em alguns pontos chaves, nos quais vamos focar nesta presente lição. São eles:

1. A legitimidade do estado
2. A descentralização de poder
3. A função do estado
4. A idolatria ao estado
5. O estado de bem-estar social

1. A legitimidade do estado

               O apóstolo Paulo é enfático: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores.” Com ele concorda Pedro, que diz “Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem” (1 Pedro 2:13-14). Não há dúvidas bíblicas sobre a legitimidade do poder civil.
               Existem filosofias humanas que pregam que o mundo estaria melhor se não houvesse governo algum. Tais filosofias são chamadas anarquistas. O termo anarquia vem do grego e significa literalmente “ausência de governo”. Existem anarquistas de diversas correntes. Existem os anarco-comunistas, que preveem uma sociedade sem estado e sem propriedade privada, vivendo em comunidades onde todos os meios de produção sejam compartilhados.
               Existem, também, os anarco-capitalistas, que prevem uma sociedade onde todas as necessidades sociais seriam providas pelo mercado, inclusive a aplicação da justiça.
               O apóstolo São Paulo, em sua epístola, e Pedro, na sua, negam firmemente qualquer posição anarquista. O estado é o ministro de Deus para aplicar Sua lei à sociedade, de modo a promover a ordem e a cooperação entre os indivíduos. Jesus também ensinou a legitimidade dos governos humanos. Cito agora dois textos em que o Senhor nos ensina que a existência de hierarquias civis é legítima.

Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. (Lucas 20:25)

Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem. (João 19:10-11)

               A Bíblia por toda parte ensina que são legítimas as autoridades civis. Se os escritores bíblicos estão certos, os anarquistas necessariamente estão errados. O governo civil é uma instituição pós-queda, ou seja, foi instituído após a queda de Adão. A sua existência  deriva-se da necessidade de refrear o mal e baseia-se, portanto, na maldade inata do ser humano, que é a doutrina da depravação total.

2. A descentralização de poder

               Paulo afirma que os homens devem estar sujeitos às autoridades superiores. Fala como de muitas, e não de uma só. Isso seria relevante? Sim, muito. Ao passo que Deus estabeleceu as autoridades civis como legítimas e necessárias, ele também determinou que não existisse uma única cadeia hierárquica vertical, mas muitas. Deus estabeleceu a divisão de poder. Gary North diz que “Deus estabeleceu jurisdições concorrentes para eliminar a possibilidade de uma tirania central absoluta.”[3]
              
               Após o dilúvio, quando Deus julgou a raça humana, os homens novamente inflamaram-se contra Ele e planejaram estabelecer uma tirania global cujo objetivo era unir a humanidade e desafiar a soberania de Deus. Planejaram a construção de uma torre altísssima, capaz de suportar a fúria de um novo dilúvio. Naquela época, os homens estavam organizados numa estrutura social monolítica. Havia uma só língua e, provavelmente, um só governo. Para evitar o mal que intentava, lemos em Gênesis 11:6-8 que o Senhor confundiu-lhes as línguas e os espalhou sobre a terra.

E o SENHOR disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro. Destarte, o SENHOR os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade. (Gênesis 11:1-8)

               Os seres humanos são naturalmente inclinados à corrupção, à maldade (Romanos 3:10). Suas línguas são naturalmente maledicentes, seus pés naturalmente correm para derramar sangue e sua vontade natural é de apropriar-se do que é de outrem pela força, e não pelo trabalho e pela cooperação. Vimos que Deus instituiu o governo como o poder necessário para frear a maldade do homem e permitir um desenvolvimento social saudável. Entretanto, como os governos são também formados por homens, eles são propensos à corrupção e à maldade da mesma maneira que o são os indivíduos. Na verdade, por serem dotados de grande força (militar) e autoridade, é extremamente perigoso que homens iníquos tomem o poder. Hitler não teria conseguido muita coisa se não tivesse alcançado tamanho poder político na Alemanha do pós-guerra. Sozinho ele não cometeria genocído algum.
               Então, para frear a maldade dos governos é da vontade de Deus a instituição de hierarquias diversas e concorrentes entre si. Um governo centralizado é um governo onde todo o poder está concentrado nas mãos de uns poucos indivíduos, ou de uns poucos grupos de indivíduos.
               Um governo descentralizado, por outro lado, é um governo onde o poder é mais local, dividido entre as diversas províncias do país ou região. Em tese, num governo assim, a função do governo central é mais representativa do que executiva. 
               A divisão de poderes pode ser vertical, horizontal ou bidirecional. Os estados modernos são baseados no princípio da divisão de poderes. Existem, em geral, dentro de um mesmo estado, três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Ambos devem literalmente concorrer e fiscalizar o outro com vistas à evitar a tirania e garantir a liberdade. Isto é o que eu chamaria de divisão horizontal. A divisão vertical é o poder repartido em esperas local, regional e nacional. No nosso caso, cada um dos três poderes horizontais tem suas  representações locais (municípios), regionais (estados) e nacionais (União).
               Seria a divisão de poderes suficiente para garantir a ordem, a paz e a justiça? Não. Saiba por que na próxima seção.

3. A função do estado

               No centro de todos os debates políticos se encontra uma pergunta fundamental: qual deve ser a função do estado? Como ele deve usar o dinheiro que arrecada em impostos? Qual a porcentagem de impostos lícita a ser cobrada? Que tipo de coisas o estado pode obrigar que os cidadãos façam sob ameaça de punição? Em resumo, qual é a diferença entre tirania e atividade estatal legítima?
               O apóstolo Paulo, ao descrever a potestade estatal em Romanos 13:1-6, nos dá a resposta de forma bem clara: o estado é o vingador de Deus. Nós aprendemos nas lições sobre os dez mandamentos que uma das funções da lei é a função civil, ou seja, proibições de cunho moral impostas a todos os habitantes de uma nação pelo próprio Deus a fim de coibir a maldade humana. O estado é, segundo Paulo, “vingador para castigar o que faz o mal” (ACF). O único que tem autoridade para diferenciar o bem do mal é o próprio Deus. Deus é, então, o único Legislador. O estado deve ser apenas um aplicador da lei (civil) de Deus. Portanto, o governo civil estará pecando se ultrapassar um centimetro sequer das atribuições que a lei de Deus lhe dá. Também estará pecando caso abstenha-se de cumprir quaisquer de suas atribuições. A função do estado é punir os criminosos. A palavra de Deus define quem é e quem não é criminoso, não o estado.
               Agora que estabelecemos de forma sucinta o que é a função da potestade estatal, devemos estabelecer, também, algumas considerações sobre o que não é função do estado. Estabelecer tais oposições faz-se necessário pois vivemos numa época de recorrente confusão a respeito do que deve ou não fazer o estado.
               De acordo com Paulo, o estado deve punir o mal. Somente isso. Nenhuma outra passagem bíblica acrescenta qualquer direito aos governantes, e os exemplos que temos concorrem para que entendamos que a função que Paulo nos apresenta é, sim, a única função legítima do estado.
A primeira função ilegítima geralmente assumida pelos estados é a função de supremo legislador. Assim como a Igreja, em assuntos eclesiásticos, somente pode legislar de acordo com a lei de Deus o estado, em assuntos civis, somente pode legislar conforme a lei de Deus. Hoje, não é raro encontrarmos situações em que o estado criminaliza ou penaliza atividades ou comportamentos que jamais deveriam ser criminalizados. Podemos citar:
a) Economia, com as regulações, controle de preços, salários, coibição de livre-iniciativa, controle e tarifação de importações e exportações, monopólio estatal da moeda, etc.
b) Educação, com toda a imposição de forma e currículo, além da obrigação de financiamento estatal de educação para todos e proibição da educação no lar.
c) Saúde, com dificuldades burocráticas para soluções privadas e inovadoras, que encarecem os serviços e causam escassez no fornecimento.
d) Demais atividades, sejam econômicas, com regulamentações, penalizações e criminalizações em quase todas as áreas da atividade humana.
e) Comportamento, com a dominação da linguagem e do pensamento pelo politicamente correto e pela regulação, penalização e criminalização de comportamentos humanos que a Lei de Deus deixa serem regulados apenas pela consciência.

Para punir o mal, o estado deve tomar, a força, dinheiro e bens de seus súditos. Tal quantia é chamada de imposto. Os que defendem a anarquia, principalmente os que defendem a anarquia capitalista, afirmam que qualquer tipo de imposto é roubo. Tal definição está errada. O imposto cobrado para manter a máquina estatal de vingança conforme a lei de Deus é não só legítimo como necessário.
Apesar de um certo nível de taxação ser necessário e legítimo, existem usos que o estado moderno faz do dinheiro que arrecada que são imorais e ilegítimos. Um exemplo de uso ilícito do erário público é a redistribuição de riqueza, de qualquer gênero e espécie. O estado não tem função de fazer caridade ou de doar nada a alguém. A razão disso é uma: o estado arrecada seu dinheiro pela coerção. As mazelas sociais, o cuidado com os doentes, moribundos, órfãos e viúvas deve ser responsabilidade dos cidadãos, usando dinheiro adquirido da geração de riqueza de forma legítima. Além disso, a Igreja é a grande instituição que tem a responsabilidade maior para com os pobres. O estado deve ser isonômico. Deve prover justiça, apenas, e de forma igual para todos.
Uma terceira e última atribuição estatal que é ilegítima é o estado ser instrumento de transformação social. Hoje, é notório que a sociedade acredita, em maior ou menor grau, que leis possam, de alguma forma, transformar o caráter do homem. Políticos lotam palanques com suas demagogias e preocupações a respeito de diversos assuntos sobre os quais eles nadam podem fazer. É daí que surgem, por exemplo, as pesadas regulações e impostos sobre o álcool e sobre o cigarro. Pensa-se que ao regulamentar comportamentos específicos do ser humano estarão produzindo pessoas melhores. Os legisladores se veem, assim, como verdadeiros engenheiros sociais, e nós somos a massa que eles desejam moldar. Em resumo, tal visão entende o estado como um Redentor. Além de ilegítima, esta filosofia é blasfema. Cristo é o único e suficiente Senhor e Salvador dos homens. Toda mudança social que precisa passar por uma transformação no coração humano está, por definição, fora do campo de ação estatal.

3.1. A idolatria ao estado

               Por que Deus limita as funções do estado? Pelo mesmo motivo que ele limita as ações dos indivíduos pela lei civil: por causa do pecado. A natureza do homem pecador é sempre inclinada para o mal. Paulo deixa esta verdade bem clara nos primeiros capítulos da epístola de Romanos. O homem, quando alcança o poder e tem a sua disposição meios de coerção para impor suas vontades aos demais, precisa ser duplamente vigiado. Vimos que uma das formas de impedir que o estado abuse do poder é a divisão de poderes. Paulo age conforme este princípio quando apela para César em seu julgamento, tentando evitar a jurisdição de Festo (Atos 25:9-11). Além disso, ele fala, em Romanos 13, de “muitas” autoridades. A divisão de poder evita a concentração tirânica de poder.
               Embora ajude, a divisão de poder não é suficiente. De nada adianta dividir o poder e embriagar a sociedade de uma doutrina estatista. Os impérios mais tirânicos e intervencionistas do mundo são as democracias modernas. E por quê? Porque o povo é idólatra. Perdeu a fé em Deus como sustentador e mantenedor de todas as coisas. Ato contínuo, despejou essa fé no estado, que prontamente assumiu o posto. Hoje deseja-se mais do que nunca um estado inchado, cheio  de gastos, provedor de tudo, cuidador dos pobres e necessitados, redistribuidor de renda, etc.
Os governos arrogam-se, também, o direito de regular virtualmente qualquer aspecto da vida do cidadão. Legislam completamente livres da submissão à lei de Deus. Se a maioria de um parlamento, por exemplo, não gosta que os produtores de gasolina vendam seu produto acima de um determinado preço, basta fazer uma lei que os proíba de fazê-lo. Se não gostam que um determinado grupo faça, fale ou aja de determinada maneira, basta fazer uma lei e regulamentar a situação. Precisamos entender que isto é tirania, e é assim que agem os estados de hoje. Tal tipo de intervencionismo e estado gigante são desastrosos para a economia. Mas não só isso. São igualmente imorais. É o estado assumindo o papel de Deus. Diante de tudo isso, concluí-se que, se o estado quiser moldar-se aos padrões divinos, ele deve ser um estado mínimo.
Outra forma moderna de usurpação estatal do papel de Deus são os impostos. Vimos anteriormente que a taxação não é necessariamente imoral. Entretanto, a maior parte da cobrança de impostos no mundo moderno é.

Disse o SENHOR a Samuel: Atende à voz do povo em tudo quanto te diz, pois não te rejeitou a ti, mas a mim, para eu não reinar sobre ele. Segundo todas as obras que fez desde o dia em que o tirei do Egito até hoje, pois a mim me deixou, e a outros deuses serviu, assim também o faz a ti. Agora, pois, atende à sua voz, porém adverte-o solenemente e explica-lhe qual será o direito do rei que houver de reinar sobre ele. Referiu Samuel todas as palavras do SENHOR ao povo, que lhe pedia um rei, e disse: Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que corram adiante deles; e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinqüenta; outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros. Tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor das vossas lavouras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais e o dará aos seus servidores. As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores. Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por  servos. Então, naquele dia, clamareis por causa do vosso rei que houverdes escolhido; mas o SENHOR não vos ouvirá naquele dia. (1 Samuel 8:7-18)

               O sistema de Israel pré-monarquia, estabelecido por Deus, era um sistema de juízes, divido em tribos, com governos mínimos locais. Era o desejo de Deus uma sociedade descentralizada. 1 Samuel 8:7-18 é um alerta de Deus a respeito do que a centralização de poder acarretaria: opressão. Os israelitas, entretanto, não ouviram este alerta.
               Uma das características de um governo central monárquico, segundo a descrição divina, seria a cobrança da décima parte da produção em impostos (vs. 15-17). Era um dízimo. Era o mesmo que o próprio Deus cobrava. Era um valor altíssimo, conforme o texto deixa claro. Concluímos, portanto, que qualquer valor acima disso é imoral. É tirânico. É uma usurpação do governo divino sobre a terra. O Brasil, hoje, cobra quase 34.8% de impostos [4]. Se 10% é o limiar da tirania, o que 34% representariam?

4. O estado de bem-estar social

               Podemos caracterizar praticamente todos os estados do Ocidente hoje como estados assistencialistas, em maior ou menor grau. Outro termo utillizado para designar o estado assistencialista é o termo “estado de bem-estar social”. A entrada do estado na economia e no fornecimento de serviços gratuitos ao cidadão foi o sinal do avanço da idolatria estatal no Ocidente no século XX. Acirrou-se na década de 30, após a grande crise econômica de 1929. Basicamente, o estado de bem-estar social é um estado com altíssima taxa de gastos (mais do que de arrecadamento em virtualmente todos os casos) e que teoricamente usa este dinheiro em obras gigantescas, criação de empresas públicas, investimentos em saúde, educação, transporte público, previdência social e uma infinidade de outros gastos além daqueles legitimamente instituídos por Deus para a aplicação da justiça.
               Como resultado de tais políticas socialistas, o estado interfere demais na economia, cria monopólitos autoritários (dificuldades ou proibições do setor privado agir nos setores onde o estado atua), etc. Assim, desta interferência, um fardo maior é colocado sobre o setor produtivo da sociedade (ele é espoliado pelos impostos) e menos recursos são investidos pela iniciativa privada em setores onde os recursos são mais urgentemente necessários. A produção decresce e, como consequência inevitável, o bem-estar geral também.
               Crer que o estado pode fornecer bem-estar por si mesmo é idolatria, pois o estado literalmente não produz riqueza alguma, ele apenas devora. Basicamente, é uma política de gastos desenfreados subsidiados por altos impostos e impressão de dinheiro literalmente do nada (fraude) para pagar as contas. O resultado de tal política irresponsável, que tem sido levada a cabo há quase um século nos países ocidentais, não tardará em vir. Crises e mais crises econômicas se seguirão como o inevitável julgamento divino por tal idolatria.

5. Rebelião

Diante de tamanhas afrontas do estado moderno à Deus e à Sua soberania resta ainda um ponto a discutir: o que fazer? Deveriam os Cristãos se rebelarem? Deveriam aqueles que prezam suas liberdades individuais se revoltarem contra a potestade? Biblicamente a resposta é não. Paulo diz que “aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação.” O apóstolo não poderia ser mais claro. Não há fundamento bíblico para que os cidadãos se armem e resistam ao poder do Estado. Por pior que possa ser a tirania, devemos evitar confronto direto.
O exemplo da igreja primitiva é revelador e extremamente pedagógico. Paulo escreveu sua carta aos Cristãos de Roma, capital do Império Romano, sede da maior tirania da época. Roma perseguia ferozmente os Cristãos. Perseguiu-os assim por praticamente três longos séculos. Não obstante, Paulo escreve aos crentes em Roma que obedeçam às autoridades. O ensino neotestamentário é o ensino da submissão e não o ensino da rebelião.
É necessário, porém, que façamos uma breve observação aqui. A submissão preconizada por Paulo e pelos demais escritores bíblicos é uma submissão física, civil. Em nenhum momento a Bíblia prescreve que submetamos nossa consciência ao poder estatal. E por quê? Porque a consciência é uma das quatro esferas bíblicas de autoridade na sociedade e essas esferas não devem tomar para si autoridade sobre nenhuma outra. Assim, a Igreja não se submete ao estado, nem o estado à Igreja. A família não se submete à Igreja, nem a Igreja à família. A família não se submete ao estado e, além disso, a consciência individual não pode se submeter coercitivamente e totalmente ao controle de nenhuma dessas esferas de poder. Todas as quatro, porém, são responsáveis a Deus. Devem obediência e submissão a Ele.
O fato de nossa consciência ser livre nos permite discordar de eventuais desmandos estatais. Devemos concordar e apoiar o estado somente até o ponto em que Ele esteja agindo legitimamente como ministro de Deus. Além disso, leis espúrias, inúteis e anti-bíblicas, cuja a desobediência em privado não trouxer qualquer perigo de resistência física ao estado, em princípio, não precisam ser obedecidas. Não precisamos temer o estado em secreto, como precisamos temer a Deus.

6. Conclusão

               É vital para a sobrevivência do mundo ocidental que a Igreja lute contra a idolatria ao Baal moderno, o estado. A cada dois anos, por exemplo, vemos em nosso país um verdadeiro show de promessas enganosas e mentirosas. São políticos que, para ganhar seu quinhão no governo, prometem toda sorte de benesses aos cidadãos que, ludibriados pela filosofia do estatismo, acreditam, desejam e mesmo exigem que o estado seja o seu deus provedor. Esta mentalidade precisa ser mudada. As expectativas do povo quanto ao governo devem ser literalmente as menores possíveis. O povo de confiar mais na iniciativa do trabalho duro e da produção de riqueza pela iniciativa privada e menos nas promessas enganosas de prosperidade fácil do governo. Deus deve ser seu provedor, não o estado. Somente assim, através de uma gradual deslegitimação do poder estatal, conseguiremos a verdadeira liberdade e, de acordo com a lei de Deus, a verdadeira prosperidade. Gradativamente, quando o povo perder a confiança em Baal, Baal perderá sua influência sobre o povo.

Por Matheus Henrique.

Texto ministrado na Escola Dominical da Congregação Presbiteriana de Heliópolis, Belford Roxo, RJ.



Referências
[1]  -  R. C. Sproul. O Que é Pietismo?. Disponível em http://zip.net/bqpr9p.
[2] - João Calvino. Uma pequena instrução para armar todos os bons cristãos contra os pestíferos erros da seita dos anabatistas. Disponível em http://zip.net/bxpsts.
[3] - Gary North. Cooperation and Dominion: An Economic Commentary on Romans (Cooperação e Domínio: Um Comentário de Economia em Romanos). Disponível em http://zip.net/brpsTW.

[4] - Heritage Foundation. Dado referente aos impostos arrecadados como porcentagem do PIB. Disponível em http://zip.net/bqpwqt

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O Valor do Ouro - Parte II

B. Monopólio e Impureza

Quando os homens, seja como cidadãos ou como funcionários do governo, adulteram o teor de ouro e prata nas moedas, o desastre segue como resultado. Quando os corações dos homens são corrompidos, eles arriscam-se na produção de moeda adulterada e de bens de consumo corrompidos (Isaías 1:22).[1] Reis tem praticado tal engodo monetário desde que eles existem. Eles derramam metais mais baratos junto à prata ou ao ouro usado para convertê-los em lingotes ou moedas. Eles substituem as notas de papel ou cheques ou dígitos de computador por os metais preciosos e, em seguida, eles multiplicam as notas, cheques, ou dígitos de computador. Multiplica-se o dinheiro, sobem os preços e aumenta a redistribuição de riqueza através do engano. O governo civil incentiva a fraude, seja diretamente (degradação de valor, impressão dinheiro) ou indiretamente (banco central e bancos comerciais). Quando as autoridades do governo civil estampam um selo numa moeda ou numa nota atestando que uma quantidade e pureza específicas de um metal precioso estão contidas em uma moeda (ou que uma determinada quantidade deste metal está na reserva para a troca imediata pela nota de papel) e, posteriormente, falsificam o processo de cunhagem ou imprimem mais notas do que há de metal na reserva, eles, assim, agem de forma fraudulenta. Primeiro, criam um monopólio da emissão de dinheiro, e então abusam deste monopólio governamental. Eles põe o dinheiro fiduciário em circulação pela compra de recursos econômicos escassos do mercado. O estado, portanto, aumenta o seu consumo através da cobrança do "imposto invisível" da inflação monetária.

O monopólio do dinheiro irroga perigos a todos, mas os cidadãos mais alertas e os beneficiários do estado se favorecem. As autoridades não podem resistir muito tempo à tentação de cobrança do imposto invisível da inflação de preços. É verdade que Bizâncio foi abençoada com uma cunhagem de ouro estável por mais de 700 anos, mas esse caso foi único na história do homem.[2]

Por esse motivo, a inflação da oferta de moeda tem sido uma característica da história humana desde o início dos registros históricos. Governos trapaceiam. Governos civis honestos não são os criadores de dinheiro; eles são, no máximo, certificadores de dinheiro. É por isso que a Bíblia repetidamente adverte sobre o pecado de pesos e medidas fraudulentos.[3] Isso está ligado à justiça (Lv 19: 33-37;[4] Dt 25:13-16[5].). Quando Jeremias comprou o campo do seu parente, ele "subscreveu a evidência, e fechou-a e levou testemunhas, e pesou ele o dinheiro numa balança" (Jer. 32:10). O dinheiro, neste caso, era 17 siclos de prata (Jr 32:9). O aviltamento da moeda não é nada menos do que adulterar os pesos e medidas, seja por cunhadores privados, falsificadores, ou funcionários do Estado.

A abolição do padrão-ouro no século XX, durante e depois da Primeira Guerra, levou diretamente a uma inflação universal, revolução e ciclos comerciais de expansão e recessão nesse mesmo período histórico. Não há escapatória da lei moral de Deus, mesmo que economistas profissionais não reconheçam a existência de tal ordem moral. Os padrão ouro e prata para moedas, ou padrões múltiplos de moedas livremente intercambiáveis, é o resultado direto da aplicação da lei bíblica.

A abolição de pesos e medidas honestos através da criação do sistema bancário de reservas fracionárias, impressão de moeda, aviltamento de moeda, ou raspagem de moeda, deve inevitavelmente resultar em repercussões econômicas e sociais desagradáveis. Quando alguém emite um recibo por metal de uma certa pureza e peso, ele deve ter exatamente aquilo na reserva. Emitir mais recibos de reserva (notas bancárias) do que a quantidade de metal realmente existente é nada menos do que adulterar as medidas, pois os resultados são idênticos ao aviltamento de moeda. É o mesmo pecado; e deve resultar no mesmo julgamento. Vivemos num universo que é pessoal e governado por uma lei moral. Crises econômicas são os dispositivos imbutidos autorreguladores – imbutidos no homem e na criação – que  refream os homens em sua busca por fazer o mal. Pesos desonestos, dinheiro desonesto, autoridades desonestas e culturas desonestas andam de mãos dadas.

Conclusão

Embora o Império Romano seja, hoje, nada mais do que pó, suas moedas de ouro e de prata ainda podem ser trocadas por bens econômicos escassos. Os Césares estão em suas tumbas já há milênios, sua autoridade está há muito destruída, mas as moedas que carregam suas faces podem ainda comprar bens e serviços. Os homens ainda imputam valor a metais preciosos muito tempo depois de eles cessarem de imputar valor a um dado regime político. Moedas de metais preciosos duram mais que governos civis. O ouro pode ser dinheiro. A prata pode ser dinheiro. Assim tem sido desde o começo da história escrita, e assim será até o fim.
      O ouro de Havilá era bom. Era ouro de alta qualidade. Era ouro desejável. Porém, mais do que isso, ele não era tão facilmente falsificável, especialmente por governos civis iníquos.[6] Isso é mais do que podemos dizer sobre notas bancárias, cartões de créditos e dinheiro fiduciário não lastreado.

Sobre o autor: Gary North, ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. North é um teórico reconstrucionista Cristão americano e historiador econômico. Já escreveu e foi co-autor de mais de 50 livros com tópicos variando entre teologia Cristã, economia e história. Visite seu website.

Sobre o texto: O texto é parte do capítulo 7 do livro Sovereignty and Dominion - An Economic Commentary on Genesis Vol. I. Baixe gratuitamente o livro aqui.

Traduzido e revisado por Matheus Henrique.

Parte I



[1] Gary North, Restoration and Dominion: An Economic Commentary on the Prophets (Dallas, Georgia: Point Five Press, 2012), cap. 3.
[2] “Byzantine Coinage,” Wikipedia.
[3] R. J. Rushdoony, Institutes of Biblical Law (Nutley, New Jersey: Craig Press, 1973), pp. 468–72.
[4] Gary North, Boundaries and Dominion: An Economic Commentary on Leviticus, 2a ed. (Dallas, Georgia: Point Five Press, [1994] 2012), cap. 19.
[5] Gary North, Inheritance and Dominion: An Economic Commentary on Deuteronomy, 2nd ed. (Dallas, Georgia: Point Five Press, [1999] 2012), cap. 65.
[6] Gary North, Honest Money: The Biblical Blueprint for Money and Banking (Ft. Worth, Texas: Dominion Press, 1986). (http://bit.ly/gnmoney)